Rainha de espadas

Dayanne Dockhorn
2 min readMar 24, 2023

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Quando decretaram estado de pandemia e fecharam todas as fronteiras entre nós, eu estava em Porto Alegre, você, em Young, Uruguai. De repente separados depois de uma vida juntos. Foram mais de 90 dias lá e aqui, até que você cruzou a fronteira ilegalmente no meio da noite para me encontrar num quarto de hotel bege na manhã seguinte. Foi fácil demais e me perguntei por que você não veio antes. Dois anos depois de ter virado o capítulo, a cidadezinha úmida onde nos conhecemos encontrava um modo de nos puxar de volta para suas ruas descuidadas e fachadas amarelas. Ali ficamos uma semana. E então um mês, que viraram três. Presos em um apartamento de dois quartos que não era nosso, mirando as calçadas do centro vazias e as janelas embaçadas pelo ar de julho. Ali, bebericando o café fervente na mesa da cozinha, já não era possível ignorar ou negar a minha doença. Tinha começado a terapia alguns meses antes, pensando que falar fosse me salvar do afogamento. Mas a conversa era como puxar uma faca num tiroteio. Logo precisei de drogas mais pesadas. Um remédio, depois outro, e outro. Antidepressivos. Antipsicóticos. Ansiolíticos. Estabilizadores de humor. As receitas mudaram mais vezes do que me lembro. Um coquetel especialmente dedicado a dar conta de todos os sintomas que surgiram ao menor sinal de fraqueza. Relatava a ansiedade que não me deixava dormir, a tristeza que não me deixava comer. Não sabia o que significava estar deprimida. Alguém sabe? Sem trabalho com o qual me ocupar, me voltei para os livros. Elena Ferrante, Virginia Woolf, Clarice Lispector. Me agarrava às narrativas não para escapar da realidade, mas para aprender a navegá-la. Na pior das crises, usei a lâmina para fazer cortes nos pulsos, não somente porque desejava estar morta, mas porque queria demonstrar, externalizar o sofrimento tecendo sua teia na minha cabeça, só na minha cabeça. Sempre fui sensível demais, propícia a demonstrar tudo pelos olhos. Mas ninguém podia ver o quanto minha mente se torcia e contorcia. Os cortes foram a forma de comunicar o desconforto, assim como os bebês gritam. Entendia muito pouco do que estava acontecendo comigo, mas, por sorte ou destino, estava na casa de quem tinha todos os manuais e livros didáticos de psicologia nas estantes. A vida dá as cartas.

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