Sensível demais

Dayanne Dockhorn
5 min readMar 22, 2022

Quem diria, uma escritora. Deviam ter avisado minha mãe, naquela noite, madrugada adentro, naquelas horas que só pertencem aos hospitais, numa sexta-feira, segunda filha, deviam tê-la avisado que escolheram para mim as partes mais moles e sensíveis da sua carne. E ainda, entre todos os recém-nascidos da maternidade, ninguém apontou para mim e disse a ela que eu não saberia caber dentro do meu corpo, que eu era nova demais para ser lar de energia tão antiga. Ninguém disse que eu transbordaria em um choro desesperado por seis meses ininterruptos, e naqueles meses sem dormir, entre médicos e mães-de-santo, me pergunto se ela suspeitou. Me pergunto se meu pai lhe disse que estava cansado, que não havia colo, silêncio, conforto suficientes para me fazer descansar. Enquanto eu me multiplicava com cachinhos no cabelo e rabiscava histórias no diário da Barbie, fazendo rimas sobre uma boneca chamada Bia, deviam tê-la avisado que havia dado a luz a uma escritora.

Soube disso enquanto meu coraçãozinho de 11 anos batia rapidamente em um misto de orgulho e maravilhamento quando a professora se colocou a ler minha poesia na frente da turma toda. Ao longo dos anos, muitas redações ganharam elogios. Já no último ano do Ensino Médio, depois que a professora de inglês terminou de ler em voz alta meu texto, ela me chamou de lado aos cochichos. “Dayanne, eu tenho que perguntar. Você copiou isso de algum lugar?” Respondi que não, claro que não. Tivera 20 minutos para escrever mais ou menos 30 linhas sobre a globalização, tema muito popular na época, com um parco texto de apoio. “Então você está acostumada a escrever?” “Sim, eu escrevo” balancei ferozmente a cabeça, como para dizimar do ar ao redor qualquer possibilidade que eu tivesse copiado o texto, uma ideia tão, tão distante de mim. O “sim, eu escrevo” gerando um formigamento nos dedos, nos braços, nas pernas. Sim, eu escrevo, pensei.

E escrevia, de fato, páginas e páginas por dia. Dos meus dedos saíam todo tipo de histórias, aventura, ficcção científica, comédia — mas tinha um queda principalmente pelos romances melancólicos, embalada pela vida e trabalho de Jane Austen. Escrevia sobre o que ainda não sabia e, em consequência, escrevia tremendamente mal, arriscando até um livro ou dois, que nunca viram a luz do dia. Mas o exercício me ajudava a ganhar confiança e intimidade com o ofício das palavras.

Ao longo do tempo passado sobre os cadernos ou frente à tela do computador, escrever se tornou parte da minha identidade, de como eu processo as informações que absorvo do mundo. Quando penso sobre o ato de escrever, ele não faz sentido nenhum. E ao mesmo tempo, quando coloco em frases e as ordeno para que outro alguém entenda as flores que crescem da minha pele, nada carece de significado.

Minha família nunca se interessou pelas longas horas que passava fazendo soar o teclado até eu ganhar algum destaque nacional. Aos 15 anos, no auge da minha incipiente carreira literária e do cabelo tingido de rosa, um texto meu foi escolhido para ser publicado em uma revista adolescente que eu venerava. Eu a comprava todo mês e lia cada página religiosamente. Sonhava em trabalhar na revista, então ter meu texto publicado ali parecia um avanço considerável nesse caminho. Aí, porque ela precisava assinar um termo de consentimento, minha mãe ficou sabendo que eu escrevia — e não só isso, que escrevia bem e alguém queria me publicar.

A revista chegou nas bancas no próximo mês com meu nome e minha foto nela, e a mãe não poupou gastos. Comprou uns vinte exemplares e foi distribuindo para todos que conhecia, se gabando do meu talento como se soubesse dele há muito mais tempo do que de fato sabia, como se o tivesse cultivado. A comoção não foi menor no resto da família. Especularam que eu escreveria romances, que poderia registrar para a posteridade a história dos meus antepassados. Me diziam em tom de cumplicidade, em meio à sobremesa, que não era todo mundo que sabia escrever como eu. Pela primeira vez, fui o alvo de alguma atenção e orgulho.

A partir desse momento, quando perguntavam o que eu planejava fazer com a minha vida, eu não tinha dúvidas, dizia que seria escritora sem saber que já o era, pelo simples ato de sentar e escrever, após as aulas, sem nunca ninguém me ordenar a fazê-lo, mas pelo puro prazer de colocar palavras atrás das outras, relatar acontecimentos com detalhes palpáveis e criar reviravoltas novelísticas. Escrever foi, na verdade, a única atividade artística que me vi sair moderadamente satisfeita. Com todas as outras eu me frustrava. Tirava notas medíocres nas aulas de costura, e nas oficinas de carpintaria e argila não tinha paciência para criar com as mãos. Gostava de ler e, por isso, comecei a escrever, como se fosse um caminho natural, sem racionalizar o motivo. Às vezes, no silêncio, a sós com os papéis e as canetas, sentia que havia nascido pra isso, um sentimento que, como onda, se refaz, se reinventa toda vez, e nunca encontrou em mim resistência. Sempre fui de natureza sensível demais, dizem (como se fosse mau presságio para uma vida ainda incipiente). Para ser escritora, no entanto, me parece tremendamente conforme.

Rapidamente meu trabalho ganhou um séquito de fãs e pude criar um repertório de amizades que faziam o mesmo. Trocávamos opiniões sobre os textos das outras, confidências, livros, dores de cotovelo e tudo que a vida adolescente implica.

No ano seguinte, fui publicada novamente pela mesma revista, que levei com orgulho às professoras de literatura. Foi organizado um sarau na escola em que leram meu texto. Meus pais, ocupados com duas irmãs menores que chegaram de surpresa quando minha mãe beirava os quarenta anos e meu pai, os 50, não ficaram tão surpresos com a minha segunda publicação, e de certa forma se mantinham distante do meu trabalho criativo.

E apesar de uma história de uma vida envolvida pelo trabalho artístico, manejei crescer sofrida, como todos os bons artistas, com um grande sentimento de indignidade — de que eu não era digna de ocupar espaço. O único espaço que sinto qualquer tipo de pertencimento é na escrita. Escrevo porque escrever já faz parte de mim; do modo que o meu cérebro funciona, como o meu corpo reage ao que está ao redor. E embora eu queira transformar o mundo e deixar meu nome marcado em algum lugar, isso é só alimento pro ego. No fundo, sei que o que realmente importa é estar presente aqui, me transformando.

Minha irmã caçula perguntou como eu escrevo poesia — de onde sai, ela quis saber. Sai de dentro, eu digo. Do que você tenta segurar com as mãos e do que foge tão brilhantemente delas. Do que fica e do que se esquece. Faz parte de como você olha o mundo, esperando tirar versos de cada pessoa ou vento que cruza seu caminho.

Deviam ter lhe avisado, mãe, mas talvez você já soubesse. Os furacões, afinal, sempre recebem nomes como o meu.

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